quinta-feira, 26 de junho de 2008

É, a culpa é do sistema

Tem coisa que é prática, escrevr é uma delas. Antes eu começava a escrever um post e já imaginava para onde ia, agora mal sei por onde começar.

Passei por alguns choques culturais aqui, mas tudo razoavelmente resolvido. Alguns chegaram a me irritar e depois que os entendi fiquei mais tranquilo. Penso que para outras pessoas a situação é bem pior (vide europeus e estadunidenses). Acontece que os choques podem levar às mais distintas interpretações e ramificações destas. Como bom exatóide, vou exemplificar.

Tem um outro brasileiro que está de intercambio na PUC (aqui chamada de católica, e o pessoal usa camisetas escrito "católica" bem grande no peito) ele me conta a impressão dos europeus que convivem com ele e pelo visto sobram piadas sobre os "latinos" e comentários como "os latinos são lentos". A minha primeira reação foi pedir que os mandassem a merda por mim.
Depois de algum tempo por aqui na Universidade eu percebi que eles tem uma certa razão (continuem a ler, por favor). Acontece que, para os europeus, os latinos são lentos porque são latinos. E na verdade é isso, os latinos são, junto com o resto do mundo pobre e explorado, os que pagam o estado de bem estar social europeu; o nosso cacau exportado é o chocolate de primeira deles; a nossa escravidão é a liberdade deles; o nosso biodisel é a consciência ambiental deles; as bibliotecas e universidades deles são a nossa lentidão; os nossos salários mais baixos são os altos deles...
Não gosto de fazer essa divisão em paises, melhor seria fazê-lo em classes, dado que essas dualidades acima expostas estão presentes internamente no Peru, no Brasil e mesmo na França ou Suécia.
Mas o principal é que existe uma razão material para isso. Os caras da minha sala as vezes tem dificuldade em ler os instrumentos de medida no laboratório, mas se ve que eles não fizeram aquilo antes, provavelmente nunca viram um antes. Quando se tem que contar o dinheiro do busão para ir para a Universidade; quando se estudou no campo; quando se viveu numa área com contaminação de chumbo (como é a região do callao aqui em lima, em que crianças foram encontradas com uma concentração de chumbo no sangue 10 vezes superior ao indicado como limite pela OMS); quando a primeira vez que entrou numa biblioteca foi na universidade fica meio foda não ser lento.
Outra impressão é que "é só festa na América Latina". Que bom!- Digo eu. Com toda humilhação, sofrimento e exploração que sofre a gente por aqui vejo três tipos de respostas: resignação, violência ou "trabalhar o ano inteiro por um momento de sonho, pra fazer a fantasia, de rei ou de pirata ou jardineira e tudo se acabar na quarta-feira". Pior seria a resignação.

Passadas as impressões dos outros vamos à alguns fatos do dia-a-dia. Das pessoas que eu mais tenho contato aqui estão duas intercambistas da San Marcos, uma Finlandesa e outra Norueguesa. Ambas brancas, loiras e de olhos claros. Elas vivem reclamando, e não lhes tiro a razão, de que são constantemente abordadas na universidade, nas ruas e onde quer que seja por homens que não tem absolutamente nada a dizer e simplesmente querem "tentar algo" com elas. Segundo elas chega a acontecer mais de uma dezena de vezes por dia! Quem faz isso aqui tem o nome pejorativo de "britchero", que vem de "bridge" ("ponte" em inglês), isto é, arrumar um gringo ou uma gringa que te leve para os Eua ou europa enfim, que te serve de ponte. Este é mais um caso de humilhação da gente daqui. Já não basta terem sido e continuarem sendo explorados pelos donos do mundo eles ainda aprendem a idolatrá-los!
Nas propagandas daqui só tem gente branquinha, estilo europeu; a cultura que presta é a do velho mundo; os filmes os yankees. Cheguei a ver umas coisas absurdas como a propaganda de uma rádio, na qual traduzem uma música, originalmente em inglês, para o espanhol e dizem: "veja como fica melhor"- Entra a música original (em inglês) e fala a voz do locutor: "algumas coisas soam melhor em inglês, x.yFM, a sua rádio em inglês!" Enfim, tudo isso para dizer que Lima é uma cidade muito racista, as pessoas são criadas dentro dos padrões europeus e yankees de cultura e beleza. Dado isso e a seguinte pergunta que fiz no bar para as duas: -quantas loiras voces veem aqui?- Seguida de um riso que significava -só nós duas- entendi os peruanos...mas não queria estar na pele das duas.
Sou prolixo e não vou melhorar isso nesse post, então ao invés de concluir eu vou me extender no que se refere ao racismo. Este também tem sua motivação material. O indígena aqui é a maioria, mesmo assim é o mais explorado e pisado, como sempre o foi desde épocas coloniais. Tanto no campo como na cidade seus direitos são atropelados e como aqui, segundo a mídia gorda, estamos numa sociedade democrática quase 80% dos trabalhadores não têm seus direitos plenamente respeitados ou vivem na completa informalidade. Dado tal realidade, temos que também são os indígenas, ou descendentes deles os que mais incomodam os donos do Peru e a parcela dos donos do mundo que investem por aqui (estes últimos dois aliados de longa data). Como são estes últimos os que controlam a mídia, as escolas, as universidade, as boates, etc, eles costumam fazer propagandas com modelos européias, as vezes brasileiras; eles fazem revistam com questionários temáticos com a pergunta (pejorativa, claro): "quão índio voce é?"; muitas vezes eles barram gente com feições indígenas de boates ou restaurantes; muito comumente eles põe como pré-requisito nas chamadas de trabalho:"boa aparencia"; e claro, línguas nativas são proibidas! Tirando o quechua não tente procurar aulas de outras línguas nativas aqui, nas faculdades de antropologia dos eua sim, aqui não! Isso é muito simples, pensando como um "dono" de fábrica: -se dois índios apertadores de parafuso discutem quem é mais índio que quem, obviamente eles deixam de discutir o que poderiam ganhar com uma greve-

Por fim algo comigo. Como lhes disse, as bibliotecas aqui são fechadas e você tem que esperar que alguém pegue o livro pra você. Outro dia fiquei uns dez minutos esperando que o carinha da biblioteca me atendesse. Ele não estava no banheiro nem nada, estava organizando uns papéis e conversando comigo. Fiquei incomodado com a situação, pensei que ele poderia me atender e voltar ao que estava fazendo, mas deixei passar. Conversando com o brasileiro da católica que já falei, trocando experiências parecidas, percebi uma certa revolta nele com a burocracia, dizendo que era primitivo aqui. Claro que nós não somos exemplo de eficiência nas instituições, nem públicas nem privadas quando se trata de atender um cliente que não tem muita escolha (vide telefônica). Mas para mim algumas coisas são uma falta de praticidade e agilidade que pareciam inconcebíveis. Parei para pensar materialmente e comecei a me perguntar para que queria aqueles 10 minutos e porque me sentia incomodado naquela espera? Aqueles 10 minutos não me serviam para nada, eu queria a eficiência pela eficiência. O ritmo do capital em que "time is money" estava tão impregnado em mim e é o tempo todo estimulado pela universidade, pelo deus mercado que acabamos prezando pela eficiência e ganhar uns minutos para ficar mais sós na frente de nossos computadores do que ter uma boa conversa. É claro que aquele senhor de província não tinha os mesmo valores impregnados e por isso aquela não era uma situação estranha para ele...
Antes eu levava com humor a explicação das coisas com a frase "a culpa é do sistema", agora acredito plenamente.

Um comentário:

Unknown disse...

é difícil comentar seu blog... vc escreve muito, e muito bem. Coloca mil coisas no mesmo post, ou seja, pra eu comentar cada uma, eu precisaria de outro blog! mas olha... me lembre de te falar da frase "eles ainda aprendem a idolatrá-los"... ela mexeu comigo.
Beijos